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Crônicas

Ervilhas


Penso que a infância seja o melhor período da vida. É nela que formamos nossa personalidade. Nesta etapa, guardamos as melhores e mais marcantes lembranças que nos perseguirão por toda a vida...

Domingo de Páscoa fui almoçar na casa da primeira-dama deste que vos escreve. No cardápio, pratos deliciosos que só a Silvana consegue fazer com o mesmo sabor, tendo a participação especial de seus filhos. Família reunida sempre é um acontecimento antagônico, mas neste caso, só coisas boas ficaram guardadas em minha mente... Um dos pratos foi escolhido especialmente para a minha pessoa e, apesar de não ter sido feito pelas mãos hábeis da minha namorada, me causou profunda nostalgia e alegria...

- É pra você meu amor... Me dizia ela mostrando o potinho com ervilhas recém-tiradas da conserva...

Naquele instante sublime, minha mente me remeteu a minha infância. Eu era um menino, mais ou menos cinco anos de vida. Minha mãe sempre plantava ervilhas e um dos maiores prazeres desta criança que ora redige estas palavras era comer ervilhas diretamente do pé. Guardo até hoje o banquinho no qual eu sentava embaixo desta planta trepadeira que se espalhava ao longo dos andaimes preparados com muito carinho pela minha progenitora. Abria a vagem e comia diretamente dali mesmo, degustava de vagarinho, não era preciso pressa, pois as ervilhas foram feitas para serem profundamente degustadas ao natural, cruas mesmo, com aquele cheirinho característico de horta dos fundos da casa... Se minha mãe deixasse, eu ficava ali por horas sem intervalo...

O tempo e o tabagismo levaram minha mãe para a eternidade, as circunstâncias também me obrigaram a mudar de rotina e de residência. O cotidiano da vida moderna não me permite mais cultivar ervilhas, sequer deleitar-me com elas diretamente da fonte e, há muito tempo, não vejo mais estas sementes ao natural, ainda na vagem. As ervilhas em conserva jamais terão o mesmo sabor daquelas da minha infância, mas me fazem lembrá-las com nostalgia e um sorriso ingênuo no semblante...

O mundo se transforma numa velocidade fantástica, os hábitos mudam, os conceitos se alteram, mas nada me fará deixar de aproveitar, se um dia puder sentar num banquinho de madeira novamente embaixo de um pé de ervilha e ficar lá por horas colhendo, vagem por vagem, abrindo-as e degustando um dos maiores sabores da minha infância...

A vida é muito simples, a felicidade é ingênua... Nós, seres humanos, é que complicamos tudo, começamos a fazê-lo a partir do momento que nos julgamos uns melhores que outros por causa de fatores externos...

Eu era feliz no meio das ervilhas, continuo feliz, de uma felicidade diferente, nostálgica, perdeu um pouco da ingenuidade, mas sempre é um prazer imaginar-me de novo uma criança inocente comendo ervilhas diretamente do pé... Ainda sinto o gosto, o cheiro e a imagem daquela planta que, aos cinco anos, me parecia enorme...

Como seria sublime se a humanidade entendesse a simplicidade e a ingenuidade da vida através da natureza. Quem sabe assim, nos tornaríamos mais humanos... Uma utopia, pois as crianças de hoje jamais terão as mesmas sensações diante das tecnologias que aproximam os perfis, mas afastam os seres humanos e a natureza...

Simplesmente jogaram minha infância dentro de uma lata para conservar por mais tempo, porém ao abrir o recipiente, percebe-se que a inocência já não é mais a mesma, foi contaminada por conservantes, corantes e muitos outros subterfúgios que a humanidade usa para mascarar a realidade e a efemeridade da vida...

Márcio Roberto Goes
www.marciogoes.com.br


Márcio Roberto Goes

Professor de Língua Portuguesa, língua Espanhola e suas respectivas literaturas, efetivo na rede estadual de ensino de Santa Catarina, graduado em Letras pela Unc, antigo campus de Caçador e especialista em análise e produção textual pela FAVEST. Escritor, palestrante, diretor artístico e locutor da Web rádio Ativa Caçador. Membro da Academia Caçadorense de Letras e Artes.

marciogrm@yahoo.com.br